Como Identificar Censura
Como identificar censura ou medida autoritária hoje?
As medidas de censura, controle ideológico e repressão institucional cresceram exponencialmente desde de 2016 no país. Trata-se não apenas de iniciativas de controle prévio de conteúdos artísticos e culturais, ainda que isso venha ocorrendo reiteradamente. A complexidade da situação atual reside justamente no fato de os episódios não se restringirem à censura “clássica”, strictu senso. Para compreender a real dimensão do fenômeno pernicioso que assola a área cultural é preciso analisar outras medidas de censura e perseguição, como:
- Cancelamento unilateral, pelo contratante, de apresentação pública, espetáculo, exposição, mostra ou qualquer outro veículo de expressão, quando a contratação já tiver sido finalizada;
- Judicialização da apresentação pública, com pedido de censura prévia da obra em virtude de seu conteúdo (geralmente por ter algum tipo de posicionamento político, de orientação sexual, gênero, crítica religiosa e afins);
- Desclassificação e cancelamento de contratação de projetos já selecionado em editais, em decorrência de seu conteúdo;
- Ameaça, abordagem e repressão policial durante realização da manifestação artística ou cultural;
- Retirada injustificada de conteúdo artístico e cultural do ar em veículos de comunicação, quando havia contrato para a exibição;
- Manipulação de edital público para discriminar determinados tipos de manifestações e orientar o financiamento público apenas para obras alinhadas ideologicamente com o governo ou a instituição privada;
- Promulgação de lei ou normativa que discrimine determinado conteúdos artísticos e culturais, permita censura prévia ou autorize atos autoritários ou repressivos;
- Instrumentalização de instituições (geralmente públicas) impactando negativamente na dinâmica republicana de contratação;
- Beneficiamento de artistas, agentes culturais e projetos que sejam alinhados ideologicamente aos gestores das instituições, com consequente cerceamento dos não alinhados;
- Discursos de ódio, violência e desinformação contra artistas, agentes culturais e obras, em especial quando partem de gestores públicos;
- Retirada e exclusão de obras específicas em contextos gerais de exibição, como exposições e mostras, em razão de seu conteúdo (geralmente com elementos referentes a sexo, sexualidade, sátira religiosa e crítica política);
- Impedimento do uso de determinados termos, palavras, expressões, imagens e símbolos, afetando o sentido integral da obra;
- Exclusão, cancelamento e interrupção de obras e apresentações de forma nitidamente autoritária, mas sob pretexto administrativo;
- Extinção autoritária de órgãos, editais, linhas de financiamento, corpos técnicos e estruturas de apoio imprescindíveis ao desenvolvimento de determinados segmentos artísticos e culturais;
- Atos de apagamento da memória institucional de órgãos culturais e de negação e dissolução do patrimônio artístico e cultural;
Empoderamento legal
Se você sofreu algum tipo de censura ou medida autoritária, o MOBILE disponibiliza alguns modelos de e-mail e PDFs para você, ou a pessoa que lhe representa, tomar as devidas providências.
Esta seção traz algumas orientações para casos de violação ou potencial violação de liberdade artística e cultural. As orientações podem servir também para casos de ingerência autoritária em projetos ou outros tipos de interferência indevida do poder público.
Trata-se de um documento de caráter geral e introdutório, com orientações que podem contribuir na identificação do problema e do dano causado. Ele não adentra questões legais específicas de cada caso, mas traz diretrizes úteis para as primeiras providências legais a serem tomadas pelo(a) artista, produtor(a) ou agente cultural.
No complexo contexto político brasileiro, a cultura, não coincidentemente, passou a ser alvo de constantes ataques e restrições por parte do Estado. Este cenário se agravou nos últimos anos, em especial a partir de 2019.
Uma sequência de fechamentos de exposições, cancelamentos de shows, mostras e performances, destruição de terreiros religiosos, ameaças a artistas e instituições culturais, ordens judiciais de censura prévia a espetáculos, entre outros episódios, vêm demarcando a posição de grupos contrários à liberdade de expressão artística e cultural que com suas práticas autoritárias e intolerantes, se utilizam de argumentos morais para travar o debate político. Infelizmente, isso tem encontrado eco em ações do poder público, especialmente em instituições do poder Executivo e em decisões do Judiciário.
Diferentemente do que ocorria em regimes ditatoriais, quando o estado de exceção escancarava as medidas de censura, hoje as iniciativas violadoras de liberdades podem se revestir de outro caráter, valendo-se de expedientes variados, todos com grande carga de autoritarismo e controle ideológico. Por isso, é importante atentar para novas formas de censura que podem emergir no atual contexto político, em pleno regime tido como democrático, de escalada autoritária.
A liberdade de expressão artística e cultural é o direito humano e fundamental de se expressar livremente através das linguagens artísticas e manifestações culturais, sem submeter-se à censura ou licença. Aos cidadãos e cidadãs é garantido o direito de criar e difundir livremente sua manifestação artística e cultural e através desta exprimir suas ideias, opiniões, sentimentos e pensamentos.
Censura é qualquer ação organizada para interromper o livre fluxo de informação protegido pelo direito à liberdade de expressão feita geralmente, mas não exclusivamente, pelo Estado, com o consequente processo de avaliação, filtragem, cerceamento e proibição de sua circulação. Trata-se de uma análise realizada de diversas maneiras e por diferentes órgãos e instituições. A censura extrapola o conteúdo das obras e alcança igualmente os seus vetores e veículos de expressão. Por exemplo, pode-se censurar uma exposição de artes visuais, inteira ainda que as obras não tenham passado por processo de censura. O mecanismo da censura é característico dos regimes autoritários e foi amplamente usado no período da Ditadura Militar no Brasil (1964-1985). Hoje, a censura é um expediente que tem convivido com regimes democráticos, apresentando-se sob roupagens diferentes, mas igualmente danosas ao direito à liberdade de expressão.
A liberdade de expressão artística e cultural está no rol dos direitos humanos, previstos em tratados internacionais importantes como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948. Ela também é um direito fundamental, garantido pela Constituição Federal em seu artigo 5º, o artigo que estabelece os direitos básicos para que todas as pessoas tenham dignidade, liberdade e cidadania.
O inciso IX, do artigo 5º, trata diretamente da liberdade de expressão, explicitando algumas de suas formas de realização. O dispositivo também proíbe taxativamente a censura.
Art. 5º, IX: é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença.
Com essa norma, a Constituição determina ser plenamente livre a atividade intelectual em geral (em amplo sentido) e a produção das obras artísticas (músicas, peças de teatro, filmes, vídeos, pinturas, esculturas, instalações, performances, mostras de fotografia, apresentações circenses, livros e etc.), assim como as obras científicas (artigos e pesquisas acadêmicas, estudos) e de comunicação (jornais, revistas, programas jornalísticos, rádios, sites etc.).
A liberdade artística também está garantida pelo artigo 220 da Constituição. Essa norma garante, de forma irrestrita, a manifestação do pensamento, da criação e da expressão.
Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.
§ 1º Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV.
§ 2º É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.
A proibição da censura e da licença vale para todas as liberdades, inclusive a artística. A licença é uma espécie de chancela, permissão formal ou autorização a ser dada pelo poder público para a publicização da obra. Já a censura é o controle prévio das obras a serem veiculadas.
Síntese das referências legais:
- Constituição Federal: art. 5º, IX; art. 5º, II; Art. 5º, X; art. 215; art. 220, parágrafos 2º e 3º;
- Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (1966), internalizado formalmente por meio do Decreto n. 592, de 6 de julho de 1992: art. 19;
- Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) (1969), internalizado formalmente por meio do decreto n. 678, de 6 de novembro de 1992: art. 13;
- Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948): art. 19; art. 27.
São várias as medidas que agentes estatais podem tomar para a restrição da liberdade artística ou para interferir indevidamente em processos culturais, de forma abusiva ou autoritária. Essas categorias listadas abaixo são algumas das principais:
- Ação policial: ação direta de força policial (civil ou militar), sob ordem (administrativa e judicial) ou autonomamente, independentemente da consequência da abordagem;
- Censura administrativa: controle prévio do agente estatal na instância do Executivo, com restrição, impedimento ou cancelamento unilateral da manifestação artístico-cultural;
- Censura judicial: determinação judicial ou ação do Ministério Público requerendo restrição, impedimento ou cancelamento da manifestação artístico-cultural;
- Legislação: medida legal (lei ou decreto regulamentador) que traz restrição da liberdade artístico-cultural ou amplia o autoritarismo ou desmonte no campo cultural;
- Medida institucional restritiva: medida de cunho administrativo, geralmente do Executivo, que não afeta diretamente a liberdade artístico-cultural, mas impacta negativamente o campo cultural em geral ou manifestações específicas, através de restrições de direitos, orçamentos e condições institucionais;
- Ação discursiva, intimidação e/ou desinformação: ação retórica e construção de narrativa através de discurso público de agentes estatais no sentido de criminalizar segmentos artístico-culturais, artistas, produtores, mobilizar a opinião pública contra o setor, ameaçar o campo cultural e propagar informações falsas.
As medidas mais comuns em abordagens diretas em projetos são: censura administrativa e censura judicial.
Geralmente, a censura administrativa se dá através de agente estatal do Executivo (secretarias municipais, estaduais e distrital de cultura, prefeituras, dirigentes de autarquias, governo federal) e de instituições ligadas a órgãos e empresas públicas, como institutos e centros culturais.
A restrição da liberdade por medida administrativa pode ocorrer através da análise prévia sobre o que será exibido e o impedimento pela Administração, geralmente por motivação política, moral ou religiosa. A censura pode vir sob o formato de cancelamento unilateral de apresentação pública, espetáculo, exposição, mostra etc., estando o contrato com o artista já celebrado. Também pode ocorrer quando um projeto classificado em edital é desclassificado e cancelado sem justificativa plausível e transparente. Outra forma de censura administrativa é o veto de determinadas obras (quadros, esculturas, músicas, performances, instalações, peças) de exibições gerais, como mostras, espetáculos e feiras. Tudo isso sempre sob determinação do Executivo (federal, estadual ou municipal), sem amparo em ordem judicial.
Quando ocorrer uma censura administrativa, as primeiras providências são:
- Procurar o diálogo com o agente estatal, para compreender o motivo da restrição;
- Argumentar que a execução da obra artística em sua integralidade é um direito garantido pela Constituição, com base nos artigos 5º, IX; 220; e 215 e 216;
- Procurar o contrato estabelecido com o órgão público e identificar possíveis cláusulas de proteção do artista e da obra, além de cláusulas potencialmente abusivas (cláusulas que exigem prestações desproporcionais do artista);
- Registrar o pedido de execução integral da obra artística ou processo cultural por email ou, preferencialmente, por documento protocolado no órgão (conforme modelo abaixo).
São Paulo, xx de xxxxxx 2021
Exmo. Sr(a). xxxxxx
Secretário(a) xxxx de cultura de xxxxxx [inserir cargo]
Representando o projeto xxxxxx [nome do projeto], solicito respeitosamente que este órgão tome as providências necessárias no sentido de liberar integralmente a execução da obra xxxxxxxx [inserir nome da obra, espetáculo, performance, exibição, mostra etc.], de caráter xxxxxx [inserir linguagem: musical, teatral, cinematográfico, circense etc.], do(a) artista xxxxxxx [inserir nome do artista, grupo ou coletivo] contratada [classificada / selecionada] para se realizar no dia xxxx [inserir data da apresentação].
A obra está sendo impedida de realizar-se em sua integralidade artística em virtude de determinação deste órgão no sentido de xxxxxx [relatar o fato: cancelamento unilateral injustificado; cerceamento de parte da exposição; etc.]. É importante destacar que a liberdade artística é um direito fundamental, amparado pela Constituição Federal através dos artigos 5º, IX e 220. Além disso, em seus artigos 215 e 216, o texto constitucional garante o plexo exercício dos direitos culturais e acesso efetivo à diversidade e às fontes da cultura nacional, da qual esta obra faz parte. A Constituição garante a livre manifestação artística sem que haja qualquer tipo de censura ou licença.
Nesse sentido, e por respeito ao contrato celebrado entre o(a) artista e o poder público para a ocasião, dou ciência dessa restrição à liberdade artística à Vossa Excelência e solicito seus préstimos para que a obra cumpra sua função social e seja exibida ao público, conforme determina a lei.
Desde já agradeço e permaneço à disposição para o que se fizer necessário.
Atenciosamente,
xxxxxxx
A censura judicial significa a determinação de algum juiz para que a obra ou manifestação cultural não ocorra. Ela significa que um processo judicial está em curso. Nesse caso, é fundamental que o artista ou seu representante constitua um advogado.
Caso a restrição à liberdade artística se dê através de ordem judicial, é preciso primeiramente compreender algumas noções básicas:
- Ação Cível. É a ação de caráter civil (não criminal), em que, por exemplo, são solicitados danos morais e materiais, obrigação de fazer e de não fazer, etc. Geralmente, são acompanhadas de pedidos de indenização. Nessas ações, o que se requer, geralmente, é a interrupção da obra já apresentada, a sua descontinuidade ou mesmo cancelamento (de temporada, mostra, feira etc.), por ter algum conteúdo julgado ofensivo contra a honra, privacidade, etc. No caso das ações cíveis, via de regra, não se fala em censura prévia de conteúdos e cancelamento da obra antes da exibição;
- Ação Criminal. É a ação que vai requerer o impedimento da obra ou do artista alegando que existe um crime. São comuns processos relacionados a crimes de injúria, calúnia e difamação, mas vários outros podem ser mencionados como causa da ação. As ações criminais geralmente são movidas para se evitar críticas e para evitar obras que tratem de alguns temas, como moral, política, religião;
- Liminar. É uma decisão urgente, emitida antes mesmo do mérito da questão. Deve ser cumprida imediatamente, caso contrário, a pessoa pode ser multada e ter vários outros problemas (inclusive no próprio processo que se inicia). A liminar visa garantir direitos que podem ser prejudicados se for preciso esperar a análise processual completa. A pessoa pode receber uma ordem liminar, mesmo antes de ser chamada para apresentar sua defesa. Essa liminar também pode cair no decorrer do processo. No caso da liberdade artística e cultural, uma liminar pode ordenar a não exibição de um show, peça de teatro, com o argumento de que o conteúdo desse show pode vir a ferir direitos. Por isso, trata-se da forma mais comum de censura judicial;
- Citação judicial. É o aviso oficial que você está sendo processado. É recebida na sua casa ou local de trabalho. Na citação constam número do processo, autor, prazo e outras informações importantes. Se receber uma intimação, é importante contatar o advogado imediatamente.
A defesa em um processo de censura judicial deve ser feita através de advogado, com base nos argumentos legais de caráter geral apresentados e em outros argumentos de caráter específico, como informações contratuais e normas específicos do segmento artístico-cultural objeto da restrição.
Em casos de autoritarismo e censura, tanto administrativa quando judicial, recomenda-se constituir um(a) advogado(a). Em ações judiciais, a Lei 1060/50 garante a assistência judicial gratuita para pessoas sem renda, a ser solicitada no início do processo.
Caso o artista não tenha recursos financeiros para custear a assistência judicial, ele pode procurar:
- Defensoria Pública: instituição pública que defende pessoas sem renda através de defensores(as) públicos (bacharéis em direito concursados); ela tem possui núcleos temáticos, como os de direitos humanos, mulheres e diversidade e igualdade racial, que podem ser acionados para casos emblemáticos. Procure a Defensoria Pública do seu estado;
- Advocacia pro bono. Várias organizações não-governamentais e escritório fornecem o serviço jurídico gratuito, de forma voluntária, a pessoas físicas e entidades do terceiro setor. Elas podem ser acionadas para a defesa da liberdade de expressão artística;
- Núcleos de práticas jurídicas. São núcleos de atendimento jurídico gratuitos ligados às faculdades de direito em todo o País. Procure as faculdades do seu estado e veja se possuem o núcleo.
Este documento contou com algumas informações de um documento mais amplo, voltado a orientações sobre a liberdade de expressão em geral: “Fui processado: o que faço? Guia prático de orientação a blogueiros e internautas”.
Várias informações do Guia servem também para a pauta da liberdade de expressão artística e cultural. Acesse aqui.